O Brasil assiste, cada vez mais perplexo, à proliferação de um modelo que deveria ser sinônimo de acesso coletivo, mas que, na prática, tem se transformado em armadilha: as chamadas “associações” no setor da construção civil. Vendidas como alternativa ao financiamento bancário e justificadas como mecanismos de “preço de custo”, essas estruturas têm se mostrado um terreno fértil para fraudes, golpes e desvios milionários. Santa Catarina e Sergipe são os exemplos mais recentes e gritantes — e apontam para um padrão de risco nacional que ameaça o consumidor e contamina a credibilidade do mercado imobiliário.
Em Santa Catarina, a operação Black Flow, conduzida pelo Gaeco, escancarou o que muitos já suspeitavam: por trás das fachadas de modernidade, havia um esquema criminoso sofisticado, que movimentou cerca de R$ 90 milhões em Itapema. Foram criadas dezenas de sociedades de propósito específico (SPEs) apenas para dar aparência de legalidade, mas sem o requisito fundamental que separa o sonho da fraude: o registro de incorporação imobiliária no cartório competente. Sem esse registro, nenhuma venda de unidade pode ocorrer — e todos os que entraram nos empreendimentos estavam, de fato, comprando uma promessa vazia. Os líderes do esquema foram presos no Rio de Janeiro, demonstrando a ramificação interestadual e até familiar do golpe. Ali, não houve inovação ou criatividade jurídica. Houve estelionato, travestido de associação.
O problema, contudo, não se restringe a Itapema. Em Porto Belo, também em Santa Catarina, uma construtora e seu sócio-administrador já haviam sido condenados pela Justiça por comercializar imóveis sem o registro devido. A sentença foi exemplar: suspensão imediata de vendas, obrigação de regularizar o empreendimento, indenização aos compradores e até contrapropaganda, para alertar consumidores a respeito da irregularidade. Isso reforça uma obviedade que, lamentavelmente, ainda precisa ser repetida: sem registro de incorporação não existe venda legal de imóvel, ponto final.
Se em Santa Catarina as associações fraudulentas resultaram em cadeia, em Sergipe o estrago tomou outro rumo, igualmente devastador. Associações que surgiram prometendo acesso seguro à casa própria e a empreendimentos mais baratos acabaram servindo de canal para investimentos em pirâmides financeiras. O resultado foi o desaparecimento de recursos em escala gigantesca: investigações apontam prejuízos superiores a R$ 100 milhões, dinheiro que evaporou em esquemas de enriquecimento rápido e que jamais retornou às mãos dos compradores. Centenas de famílias sergipanas, que acreditaram em discursos de inovação, viram não apenas seus imóveis não saírem do papel, mas também seu patrimônio ser tragado por estruturas fraudulentas. O sonho virou combustível de pirâmide.
E não são apenas SC e SE. O Rio de Janeiro já viu investigações sobre associações suspeitas; a Paraíba teve casos de pirâmides ligadas a supostos empreendimentos imobiliários; e outros estados registram ações judiciais semelhantes. O padrão é idêntico: cria-se uma entidade, coleta-se dinheiro dos compradores, vende-se a ilusão de que não se trata de incorporação imobiliária, mas de “associação entre futuros condôminos”. No papel, parece legal. Na prática, é um caminho para lesão ao consumidor e terreno fértil para fraudes milionárias.
É hora de ser claro e implacável: o modelo associativo, quando usado para mascarar a ausência do registro de incorporação, não é alternativa de mercado. É risco, é fraude e é crime. O registro em cartório não é burocracia, mas a única garantia de que o empreendimento existe juridicamente e de que os recursos aportados terão destinação legal. Quem compra sem esse registro está, na melhor das hipóteses, financiando risco; na pior, sustentando golpes milionários. Quem vende sem registro, por sua vez, incorre em ilícito que pode levar não apenas a condenações cíveis, mas também a processos criminais.
O impacto não se limita às vítimas diretas. Quando esquemas como os de Itapema ou Sergipe vêm à tona, toda a cadeia da construção civil sofre. A confiança do comprador é abalada, o crédito para empresas sérias encarece, fornecedores enfrentam retração e o setor, que é um dos motores da economia brasileira, perde competitividade. Os aventureiros saem de cena, mas deixam um rastro de desconfiança que atinge quem trabalha corretamente.
É nesse ponto que o papel dos órgãos fiscalizadores e do Judiciário se torna decisivo. Em Sergipe, já houve decisões determinando a paralisação de empreendimentos sem registro e a exigência de regularização documental. Em Santa Catarina, as prisões mostram que a resposta penal é possível e necessária. Mas isso não basta. É preciso ampliar a fiscalização preventiva, punir com rigor quem insiste nesse modelo e, sobretudo, alertar de forma contínua os consumidores: não assine, não pague, não financie nenhum empreendimento sem o número do registro de incorporação imobiliária devidamente publicado.
A verdade é dura, mas precisa ser dita: não existe mágica no mercado imobiliário. Preço baixo e promessa de inovação não substituem a legalidade. O consumidor que embarca em associações sem registro pode até acreditar que está participando de algo moderno, mas está apenas se colocando na linha de fogo de esquemas que já provaram ser devastadores. E o mercado que tolera essas práticas, seja por omissão ou conveniência, contribui para a corrosão da própria credibilidade.
O caso de Itapema deixa uma lição que deveria ecoar em todo o país: associação de fachada leva à polícia, à Justiça e à prisão. O caso de Sergipe reforça o alerta: associação sem registro também pode ser o passaporte para a pirâmide, para o sumiço de milhões e para a ruína de famílias inteiras. Diante de provas tão claras, qualquer tolerância é conivência.
O futuro do setor imobiliário passa por uma escolha simples: ou o mercado adota tolerância zero a esse modelo desvirtuado, ou continuaremos a assistir a famílias destruídas, obras fantasmas e golpes milionários. Santa Catarina já mostrou a resposta policial. Sergipe mostrou o tamanho do prejuízo. O próximo passo é do consumidor, do Judiciário e do próprio mercado: dizer basta e blindar a construção civil contra aventureiros.
Por. Márcio Rocha
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