ociedade de Psiquiatria defende mais recursos para ambulatórios, enquanto a de Psicologia quer verbas para atenção psicossocial; representante do governo rebate críticas
Em audiência pública na Câmara dos Deputados, especialistas em saúde mental foram unânimes em apontar a urgência de mais investimento em políticas públicas de saúde mental no Brasil, diante do aumento do número de casos de ansiedade, depressão e suicídio, mas há divergências sobre quais devem ser as prioridades. O debate foi promovido pela Comissão de Seguridade Social e Família nesta quinta-feira (10).
O deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG), um dos parlamentares que pediu a audiência, salientou que a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que a ansiedade afeta 18,6 milhões de brasileiros, e os transtornos mentais são responsáveis por mais de 1/3 das pessoas incapacitadas nas Américas. Ele acrescentou que a Covid-19 fez com que os transtornos se agravassem, intensificando os quadros de ansiedade e depressão, e também trouxe novas questões, como o uso excessivo da internet.
O parlamentar ressaltou que a Lei da Reforma Psiquiátrica, que completou 21 anos este ano, redirecionou o modelo de assistência e tem como principal diretriz a internação do paciente somente se o tratamento fora do hospital se mostrar ineficaz. Porém, apontou que o atual governo sinalizou a intenção de revogar inúmeras portarias que estabeleceram essa política. Diante da repercussão negativa, o Ministério da Saúde decidiu criar um grupo de trabalho sobre o tema, e Barbosa questiona o governo sobre os resultados desse trabalho.
Barbosa também questionou o ministério sobre a não implantação da Lei 13819/19, aprovada pelo Congresso, que prevê a notificação compulsória para os casos de tentativa de suicídio e automutilação por estabelecimentos de saúde, segurança, escolas e conselhos tutelares. O deputado defendeu prioridade para a saúde mental no orçamento do Sistema Único de Saúde.
“É muito necessário que haja um acordo entre as divergências, para que a gente possa focar em qual rede de fato em que nós devemos investir, e na minha compreensão todos têm razão e todos trazem concepções que precisam ser consideradas”, ponderou.
Acesso a ambulatório
Diretora secretária adjunta da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Miriam Gorender avalia que existe no Brasil uma falha muito grande na assistência e que vem afetando a saúde e a vida da população, observando que o suicídio é, muito frequentemente, consequência de doença mental tratada de forma ineficaz.
“Em outros países, onde a assistência à doença mental é mais adequada, o nível de suicídio vem caindo consistentemente. Infelizmente no Brasil, esses níveis vêm subindo de uma forma constante”, afirmou.
“Além disso, esses pacientes que não estão sendo corretamente assistidos estão na rua – cerca de 80% das pessoas em situação de rua são portadores de doenças mentais não tratadas -, e nos presídios – 12% de toda a população carcerária no Brasil é portadora de doença mental grave”, completou. Miriam Gorender considera que ocorre um genocídio silencioso no Brasil: na rua, as pessoas morrem de doenças e privações, e nas prisões, de suicídio.
Conforme ela, com o avanço da ciência, o doente mental pode levar uma vida normal e aproveitar seu potencial, mas para isso é necessário que tenha acesso a tratamento eficazes. Na visão da médica, o que mais falta no Brasil é acesso ao ambulatório multiprofissional em saúde mental, que considera “o equipamento mais barato, eficaz e produtivo para manter o paciente longe dos hospitais, longe do internamento ou reinternamento, e para manter o paciente o mais produtivo possível”. Ela disse que isso é feito nos consultórios particulares e esse tratamento tem que ser levado ao setor público também.
A psiquiatra Sandra Peu, também da Associação Brasileira de Psiquiatria, acrescentou que existem situações graves, em que é preciso salvar vidas e em que a internação é necessária, com equipes multiprofissionais especializadas e ambientes arquitetonicamente adequados. Ela observou que as chamadas residências terapêuticas e moradias assistidas não são esses locais. “Elas são um suporte social, e não deve o Ministério da Saúde arcar financeiramente com algo que é próprio do Ministério da Cidadania”, enfatizou. Ela criticou o fechamento de leitos psiquiátricos e defendeu a existência deles para o tratamento de pessoas em crise.
Retrocessos
A psicóloga Lourdes Machado, representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP), ressaltou a importância da inclusão social e de um sistema público de acolhimento e tratamento das pessoas com transtornos mentais – para ela, o conceito de doença mental é inapropriado. Na avaliação dela, houve um retrocesso nos últimos cinco anos no debate sobre políticas para a saúde mental no Brasil, que anteriormente avançava no sentido da luta antimanicomial.
“O foco atual da política de saúde mental contraria toda cronologia, todos os preceitos do modelo psicossocial, os princípios da reforma sanitária e psiquiatra e não teve uma discussão previa com o conjunto de atores que atuam no setor no País”, frisou.
Ela citou, por exemplo, que os pacientes em situação de emergência pararam de ser atendidos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) para serem encaminhados aos hospitais gerais. Além disso, apontou falha na política para as drogas. “A gente sabe que o maior problema de saúde pública no mundo, a segunda maior causa de internação no SUS é o álcool, e a gente não se dedica ao álcool como se dedica ao crack, então a gente faz uma distinção entre drogas lícitas ou ilícitas”, citou.
Lourdes Machado também criticou o investimento em comunidades terapêuticas fechadas e privadas, em detrimento da rede estatal de atendimento. E disse que uma política adequada para a saúde mental contemplaria, por exemplo, o financiamento dos centros de convivência, o aumento do número de Caps, e o aumento do número de profissionais para atendimento nos territórios.
Subfinanciamento
Já o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado chamou a atenção para o subfinanciamento da saúde mental no Brasil, que recebe menos de 2% do orçamento do SUS, quando deveria receber no mínimo 5%. Ele apontou ainda “apagão de dados” sobre saúde mental a partir de 2016.
“Os dados sobre a política de saúde mental que eram regularmente fornecidos pelo Ministério da Saúde não estão mais disponíveis”, disse. “Em 2021, o ministério publicou dados sobre a rede de saúde mental, mas são dados ainda bastante incompletos e o que me chama atenção é que há uma redução no número de serviços públicos, quando a complexidade dos problemas de saúde mental vem aumentando, porque eles também estão vinculados à crise social”, completou.
Ele lembrou do impacto, sobre a saúde mental, da pandemia de Covid-19 e também de problemas como violência, precarização das condições de vida e fome. “Outro ponto relevante é que houve deslocamento do campo da saúde mental para o campo das comunidades terapêuticas, que tiveram ampliação de recursos extremamente significativa nos últimos anos”, acrescentou ainda. Para eles, os principais desafios no setor incluem recuperar a rede de Caps, que estão precarizados e subfinanciados.
Visão do governo
Coordenador-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Rafael Ribeiro Bernadon afirmou que nunca houve intenção do ministério de retrocessos na política de saúde mental. “As mudanças que foram feitas em 2017 foram mudanças evolutivas, construídas e pactuadas com os conselhos de secretários municipais e estaduais de saúde, foram um consenso e o reconhecimento de deficiências na rede”, afirmou. Ele garantiu que as propostas foram levadas ao Conselho Nacional de Saúde e que prevaleceu um entendimento técnico.
Bernadon acredita que antes havia demonização dos ambulatórios, que neste governo voltaram à rede. Na avaliação dele, os Caps são importantes para transtornos mentais graves e persistentes, que precisam de reabilitação e de receber medicação diária. Mas disse que o cuidado em liberdade não exclui o cuidado em ambulatórios e hospitais e nem as internações.
“Os serviços são complementares”, afirmou. Ele negou o apagão de dados, dizendo que o ministério publica portarias de consolidação de dados, e negou também a diminuição de serviços. De acordo com ele, o único serviço que diminuiu foram justamente os leitos de internação psiquiátrica, o que, para ele, pode contribuir para o agravamento da situação de aumento das taxas de suicídio.
Sobre a implantação da Lei 13819/19, Bernardon respondeu a Eduardo Barbosa que o ministério implanta, desde ano passado, serviço piloto no Distrito Federal de atendimento telefônico de apoio a suicídio e automutilação. A intenção é definir protocolos de atendimento antes da implantação de serviço nacional. Ele acrescentou que em julho o ministério público fez chamamento público para a implantação de 150 novas unidades ambulatoriais para crianças e adolescentes, porém, segundo ele, a portaria foi derrubada a partir de pressão dos secretários estaduais, que argumentaram que a portaria não foi pactuada.
Fonte: Agência Câmara de Notícias