Acordar e sentir o aroma de um café pode ser algo corriqueiro para várias pessoas. Mas a perda de olfato durante o período pandêmico mudou essa realidade na vida de muita gente em todo o mundo. Quando a pandemia de covid-19 trouxe os primeiros casos de anosmia ao hospital administrado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares em Aracaju (HU-UFS/Ebserh), a equipe do chefe da Unidade de Cabeça e Pescoço, Ronaldo Carvalho, começou a estudar soluções terapêuticas para o problema. A anosmia é a perda total ou parcial do olfato, que se manteve, nos últimos anos, como uma das possíveis sequelas da infecção pelo novo coronavírus.
“No início de 2021, iniciamos uma pesquisa relacionada a procedimento cirúrgico para restabelecer o olfato de pacientes acometidos pela covid-19. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em setembro daquele mesmo ano, com os estudos avançados, e começamos a colocar em prática as cirurgias”, conta o professor e pesquisador Ronaldo Carvalho. Na época, houve grande repercussão da descoberta na imprensa, num momento em que a comunidade científica mundial estava em busca de soluções para a anosmia pós-covid.
Atualmente, o serviço no HU-UFS/Ebserh é gerido por uma equipe multidisciplinar, liderada pelo otorrinolaringologista Ronaldo Carvalho e pelo especialista em microcirurgia de nervos periféricos, Alex Carvalho. O procedimento cirúrgico consiste na transferência de ramos do nervo oftálmico para a mucosa dentro do nariz com a interposição de enxertos nervosos. “Fizemos uma adaptação às técnicas de cirurgia de anosmia decorrente de traumas cranianos. É uma união das técnicas de microcirurgia e de endoscopia”, pontua Ronaldo.
Primeira cirurgia
Em março de 2022, a equipe de Ronaldo Carvalho e Alex Carvalho realizaram a primeira cirurgia de correção de anosmia pós-covid. A farmacêutica Vanessa Silva tinha acumulado três resultado positivos para covid-19. “Logo na primeira vez que peguei a covid, já perdi o olfato e o paladar. Depois que a infecção passou, recuperei muito pouco dessas funções. Comecei a procurar tratamentos para tentar resolver o problema”, comenta a paciente.
Vanessa sentiu que a perda do olfato foi piorando depois da segunda e da terceira infecções por covid-19. “Na primeira vez, ainda diferenciava doce de salgado; depois da terceira, já nem isso conseguia mais. Contabilizei um ano e nove meses sem olfato”, explica. Uma das maiores dificuldades de Vanessa era com a alimentação. Durante o tempo em que ficou sem olfato, a farmacêutica emagreceu seis quilos. “Não tinha vontade de comer, porque não sentia o sabor do alimento. Só me alimentava por obrigação”, desabafa.
As terapias alternativas não funcionaram com Vanessa. Ela tentou alguns medicamentos, suplementações e estimulações por essências. Na primeira consulta com Ronaldo Carvalho, o médico explicou-lhe que o procedimento ainda era experimental, mas que poderia ser tentado. “A Vanessa chegou ao consultório com mais de seis meses de perda do olfato, o que fazia dela uma paciente com indicação para a cirurgia, especialmente porque ela já havia tentado outras formas”, detalha o professor Ronaldo.
“No dia do procedimento, eu estava muito ansiosa. Para mim, a perda do olfato mexeu com a minha vida pessoal e profissional. Foi a maior felicidade do mundo. Nunca imaginei que ficaria tão contente por entrar numa sala de cirurgia. A equipe do HU-UFS/Ebserh foi muito acessível em todas as etapas”, lembra Vanessa.
Ronaldo Carvalho assevera que a cirurgia ocorreu conforme as expectativas. “Como se tratava da primeira, tínhamos de aguardar o pós-operatório para entender que tipos de resultados ela teria. Na época, dei um prazo de três a seis meses à Vanessa para começarmos a ver alguma diferença”, ressalta.
No entanto, um mês depois de ter feito a cirurgia, Vanessa se acordou, um certo dia, e indagou a sua mãe, com quem vivia num apartamento: “Mãe, a senhora está fazendo café?” Num primeiro momento, a mãe de Vanessa não acreditou; passados alguns instantes, as duas se emocionaram juntas. “Pensei logo em como eu queria contar a novidade para o professor Ronaldo. A casa toda cheirava a café”, recorda.
Quando recebeu Vanessa de volta ao seu consultório, passados três meses da cirurgia, Ronaldo Carvalho surpreendeu-se com os resultados dos testes aos quais a paciente foi submetida. “Pudemos ver que o procedimento foi um sucesso. Havia uma evolução clínica extremamente favorável. Atualmente, a Vanessa está num estágio de anosmia leve, o que é muito próximo de uma pessoa com olfato completamente normal. Expliquei a ela que precisaríamos continuar a evolução, mas ficamos bastante satisfeitos com os resultados iniciais”, avalia o especialista.
“Na vida, temos sempre que acreditar. Algo que parecia impossível foi realizado por essa equipe tão competente. Ouvi de muita gente que nunca mais voltaria a ter o meu olfato de volta, que a ciência ainda não havia descoberto uma solução. Mas a ciência realizada no HU-UFS/Ebserh já estava atrás dessa solução. Um hospital público, que é também uma escola formadora de profissionais, fazendo a diferença na vida das pessoas”, resume Vanessa.
Raio-X da inovação: entendendo a técnica
Quando o novo coronavírus ataca uma região chamada neuroepitélio olfatório, dentro do crânio na parte mais alta do nariz, ele destrói o tecido nervoso. A técnica pensada pela equipe do professor Ronaldo Carvalho consiste em trocar esse nervo destruído por outro funcionante, a fim de que ele estimule o neuroepitélio olfatório a se regenerar.
A técnica de transferência nervosa, que já se utiliza em outros procedimentos cirúrgicos, permite buscar um nervo doador em outra parte do corpo do paciente para transportá-lo à região do nariz. No caso específico, a equipe do professor Ronaldo se vale do nervo supraorbitário, próximo à sobrancelha, e de uma ponte nervosa – pelo fato de o supraorbitário ser curto – obtida do nervo sural, localizado na perna.
“A técnica permite duas opções ao organismo. O neuroepitélio olfatório pode se regenerar, como esperado, ou o indivíduo pode passar a sentir o cheiro das coisas a partir da nova ligação criada, uma vez que o nervo supraorbitário, que está vivo, passa ser direcionado a essa nova função. Isso significa que o olfato pode chegar ao sistema nervoso central por outra via, devido à plasticidade do nosso cérebro”, descreve Ronaldo.